Enfrentar os extremos climáticos é, também, salvar a arte brasileira e os modos de existir

Os extremos climáticos trazem problemas para os artistas e as culturas ancestrais. Coluna publicada no jornal Diário do Comércio
Vasos em cerâmica da artista Dona Rita. Turmalina, Vale do Jequitinhonha. Foto: Projeto Preserva

Das áreas alagadas da Amazônia às veredas quase extintas de Minas Gerais, o buriti espalha vida, alimento e vira arte. Tudo se aproveita nessa palmeira. Até a palha e as fibras das folhas são trançadas e se transformam em cestarias e tapetes. Essa matéria-prima, no entanto, está em falta por causa da seca e dos incêndios.

Os buritizais dependem dos terrenos alagados, ameaçados agora pelo fogo, mas, antes, pelo desmatamento e pela expansão agrícola. A produção de arte brasileira é fundamentada nos biomas, lembra Rafael Alves, que é curador e lida com artistas de todo o país. Ele diz que a seca extrema já compromete tanto a produção quanto as entregas das peças.

“O escoamento da produção dos artistas do Norte do país já está afetado. As peças de comunidades ribeirinhas do Rio Negro, por exemplo, não podem ser entregues porque os rios estão baixos.”

A seca e as altas temperaturas trazem problemas também para os ceramistas. O ar seco está interferindo no processo de produção, me contou o artista Ulisses Mendes, de Itinga, no Vale do Jequitinhonha. Reconhecido como mestre nesse ofício, Ulisses transporta para o barro os personagens do Vale, retrata o cotidiano, a vida e o trabalho.

“A etapa mais caprichada e minuciosa de cada peça precisa da umidade e o barro não pode secar antes que a gente termine todos os traços. O acabamento não fica bom. Agora, com esse ar seco, eu preciso cobrir a parte da peça que não estou modelando, senão, perco todo o trabalho.

Já a produção de cestaria com taquara está diminuindo porque o terreno que era dedicado ao bambu deu lugar à monocultura ou a pastagens.

Em Pirapora, a arte das carrancas e os saberes ligados ao rio, como a pesca e a navegação, adormecem à espera das águas do rio São Francisco. A seca e o assoreamento fizeram o nível do rio baixar ainda mais.

A imagem mais forte dessa cultura em suspensão, é a do Vapor Benjamim Guimarães em terra firme, às margens do rio, à espera do fim da restauração.

Quando viajei mais de 6 mil km em Minas Gerais, mostrando os Saberes Ancestrais pelo Projeto Preserva, percebi como esses conhecimentos estão conectados aos ecossistemas. Nas encostas da Serra do Espinhaço, comunidades de 15 cidades no entorno de Diamantina se identificam como apanhadores de Sempre-Viva.

É preciso lembrar que esse sistema de agricultura tradicional é o primeiro do Brasil a ser reconhecido como Patrimônio Agrícola Mundial pela ONU. Mas essa herança cultural está ameaçada pelo avanço da mineração e da monocultura de eucalipto.

Os biomas fornecem as fibras, as texturas, as cores, a argila e a madeira que ganham forma nas mãos dos artistas, mas não se trata apenas disso. A vivência nesses espaços também molda as formas de sentir, os modos de ser, de existir. A natureza, nesse caso, não é mera fonte de recursos para o fazer da arte: ela dá sentido e poesia à vida de quem habita seus territórios.

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