Uma formação geológica rara no mundo está presente nos topos de morro do Quadrilátero mineiro, nos arredores de Belo Horizonte. Ela é crucial para o abastecimento de água da Grande BH. As rochas de minério de ferro abrigam aquíferos, um sistema natural que coleta e armazena água e mantém a umidade do subsolo. É essa umidade que vai aflorar em nascentes e todos os cursos de água, como poços e rios. O mais singular é que os aquíferos dessa região são profundos, com capacidade de coletar a água da chuva e conduzi-la ao subsolo, permitindo uma recarga hídrica eficiente.
O geólogo Paulo Rodrigues, pesquisador e professor do programa de pós-graduação do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear, o CDTN, explica porque esses sistema é único: “É uma exceção o que temos aqui. Normalmente os aquíferos são em fundos de grandes vales, como os aquíferos Amazonas e Guarani. Mas, no Quadrilátero, eles estão dentro das formações geológicas, nos topos de morro, e com um diferencial: conservam a qualidade da água”.
“Em alguns lugares no mundo, existem aquíferos em rochas, mas que não se comparam aos nossos, que são muito profundos. Aqui, os aquíferos podem chegar a um quilômetro com água em grande quantidade”.
Como funcionam os aquíferos do Quadrilátero
A camada superficial desse sistema hídrico das rochas de minério pode ser vista a olho nu, nos poucos lugares que restam, protegidos por áreas de conservação. Observe a foto acima, feita no Parque Estadual da Serra do Rola Moça, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ela é bem fina, aparece em tom escuro, no topo do morro, e se chama Canga: uma rocha dura, mas tão porosa que funciona como um coletor natural para a água da chuva. A camada logo abaixo, exerce outra função que garante que a água coletada não será desperdiçada.
“A camada de minério logo abaixo da Canga, por ser mais permeável, libera a água de forma lenta para a faixa subterrânea do solo. Essa é a definição de aquífero: formação geológica capaz de armazenar e doar água em grande quantidade. Essa dobradinha, em que temos a Canga porosa que coleta a chuva e logo abaixo o minério, com fraturas por onde a água passa, é excepcional. Não é qualquer rocha que faz isso”, explica o geólogo Paulo Rodrigues.
No Quadrilátero mineiro, as zonas de recarga hídrica, essenciais para abastecer as águas subterrâneas, estão nos topos de morro. Existem quatro tipos de formação consideradas aquíferos no Quadrilátero, mas, curiosamente, a formação denominada Cauê é responsável por 80% da água subterrânea de toda essa área. O professor chama isso de paradoxo da sorte:
“é exatamente no aquífero Cauê que está o minério de ferro que interessa à exploração”.
O professor usou uma sobreposição de mapas: o primeiro mostra as Serras que fazem parte do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero. O segundo, indica onde há mais água.
Seca da água subterrânea: o perigo da escassez hídrica
A destruição desses aquíferos leva, consequentemente, à falta de água para todos. O ciclo da água está nos livros de ciências de toda escola, mas uma informação específica desse processo pode ter passado despercebida: só existe água no lençol freático, e por consequência nas nascentes e rios, porque a água da chuva é naturalmente coletada e armazenada pouco a pouco, compondo a umidade do subsolo. De forma lenta e constante. As áreas onde a água da chuva é coletada e armazenada até chegar a subsolo são chamadas de Zonas de Recarga Hídrica.
A água da chuva precisa ser absorvida pelo solo para recarregar o lençol freático. O excedente de água sai do subsolo em forma de nascentes, minas e olhos d’água, que formam rios ou cachoeiras. Parece óbvio, mas o professor enfatiza que, seguindo esse raciocínio, é crucial manter o subsolo recarregado.
A preservação das áreas de recarga hídrica, nesse caso, é crucial. Muitos aquíferos do Quadrilátero mineiro já foram afetados. Atualmente, os mais preservados estão na Serra do Gandarela e na Serra da Moeda, que são os maiores responsáveis pela produção de água que abastece a Região Metropolitana de Belo Horizonte.
“A usina hídrica do quadrilátero vem sendo destruída. Na Serra do Gandarela, está o último grande reduto de água que ainda não foi destruído. Embora a serra tenha se tornado Parque Nacional, uma importante área de aquífero está fora da proteção e é de interesse da mineração”
A falta de dados para controle sobre o uso da água usada pela mineração é outro problema e foi tema de um estudo lançado em Brasília.
As outorgas de água para mineração não informam o aquífero de origem, segundo levantamento
Minas Gerais é o estado que mais recebeu outorgas de água para mineração em 2022, segundo estudo da ONG Fase – Solidariedade e Educação – com base nos relatórios da Agência Nacional de Águas (ANA). 61,4% das liberações para extração de água superficial ou subterrânea no país foram em Minas Gerais. A outorga é autorização de uso de água subterrânea ou superficial. Na maioria dos casos, os governos estaduais administram as outorgas.
O estudo foi lançado durante o Seminário sobre Outorgas de Água, realizado na Câmara dos Deputados, em 7 de novembro. Durante o evento, Maiana Maia, que é organizadora do levantamento, chamou atenção para outra dado em Minas Gerais: o volume de água também é alto. “O estado concentra 56,4% da vazão de água outorgada para mineração“.
Segundo ela, outro dado grave mostrado durante o processo de levantamento de dados, é que os registros de gestão das águas são inconsistentes. Não há dados suficientes. O levantamento mostrou que 71% da vazão das águas subterrâneas para o setor não apresentam informações sobre o aquífero de origem, ou seja, de onde é retirada ou usada.
“Há um evidente processo de espoliação das águas subterrâneas pelo setor mineral no Brasil, que viabiliza a concessão de outorga de 66 milhões dos 92 milhões de litros por hora” diz o estudo. As informações vazão da água são autodeclaradas pelos empreendimentos e as outorgas são renovadas automaticamente.”
Segundo o estudo, as ausências de informações presentes nos registros de outorgas de uso da água não são ineficiências técnicas, mas sim condicionantes de um modelo de gestão que viabiliza a apropriação corporativa pelo setor mineral e outros setores econômicos.
O link para o estudo completo está disponível na Veredas, a newsletter do Projeto Preserva.
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