Memória e luta por justiça brotam da lama de dor de Brumadinho

OPINIÃO

Por Carolina de Moura - Instituto Cordilheira

Carolina de Moura - jornalista especializada em gestão do ambiente e sustentabilidade, moradora de Brumadinho e coordenadora do projeto Lótus, do Instituto Cordilheira. Conselheira do Instituto Projeto Preserva. Foto: acervo pessoal

 

Há exatos seis anos, colapsava em Brumadinho a barragem I de rejeitos do Complexo Paraopeba, de propriedade da mineradora Vale. O dia 25 de janeiro de 2019 mudou para sempre a vida de milhares de pessoas. As cicatrizes permanecem abertas e a busca por justiça, pela memória e pela não repetição dos crimes da mineração se mantém viva, apesar de todas as adversidades.

Foi um homicídio doloso em massa com uma destruição socioambiental de proporções difíceis de se calcular. São perdas e danos irreparáveis que poderiam ter sido evitados, não fosse a ganância, a negligência e a irresponsabilidade de tomadores de decisão da mineradora, da certificadora alemã Tüv Süd e do Estado de Minas Gerais.

“Coração do outro é terra que ninguém vai”, diz o ditado popular. Cada pessoa sente e interage com o acontecimento de maneira única. A mãe que perdeu sua filha, a esposa que ficou sem o marido, a criança que foi privada para sempre do convívio com sua mãe, a comunidade que perdeu sua identidade, seu sossego e seu rio, o trabalhador sobrevivente que perdeu dezenas de amigos, as pessoas defensoras do território que alertavam sobre o modus operandi violador de direitos da mineradora antes da tragédia, mas não foram escutados, aqueles que tiveram seus sonhos e projetos de vida destroçados; cada ser humano tem suas lembranças específicas e sofre consequências físicas e emocionais diferenciadas.

 

Região de Brumadinho atingida pelos rejeitos da Barragem da Vale. Foto: acervo pessoal Carolina de Moura

E qual é a memória coletiva que está sendo criada pela população atingida? E qual a memória social que ficará sobre esse acontecimento? Como essa história será contada para as gerações futuras? As respostas para essas perguntas estão em elaboração e dependem da capacidade crítica, da responsabilidade e da atitude de todas as pessoas.

O que você pensa quando assiste a uma sofisticada propaganda da Vale em horário nobre na televisão? Você acredita na narrativa que diz que Minas Gerais não consegue sobreviver sem a mineração e que temos que aceitá-la, afinal, é um “mal necessário”? É preciso muita atenção para não ter sua opinião manipulada por alguém que não se preocupa com você.

Para quem vive as várias camadas de impactos e sofrimentos causados pela mineradora, é doloroso escutar frases como: “foi tudo muito triste, mas a Vale já pagou boas indenizações e aprendeu com a tragédia; o Estado fez um acordo bilionário que está beneficiando muitas pessoas; as instituições de justiça estão monitorando as barragens; é hora de esquecer e seguir adiante”.

As várias atividades que marcam os seis anos da tragédia crime em Brumadinho estão, em enorme desigualdade de forças, alertando a sociedade sobre a urgência de uma mudança estrutural no modelo de mineração. Ninguém pode esquecer, relativizar e naturalizar as barbaridades e as violências sutis e brutais cometidas pela Vale, com seus cúmplices e aliados, antes e depois de janeiro de 2019.

A mensagem central da AVABRUM (associação de familiares de vítimas fatais), neste ano, é justamente sobre a memória do irreparável. Dinheiro nenhum do mundo vai trazer de volta o cheiro, a voz e o abraço da pessoa amada que foi assassinada.

Se a punição for apenas o pagamento de multas e indenizações, o setor mineral seguirá com a política de financeirizar a morte. As investigações revelaram um documento da Vale com uma previsão orçamentária no caso de colapso da barragem: a companhia calculou quantas pessoas podiam morrer e quanto custariam as indenizações. E fez a sua escolha.

É por isso que a luta por justiça criminal é tão necessária. A responsabilização penal das pessoas que sabiam dos riscos da estrutura, tinham obrigação de agir, mas optaram por se omitir, será um alerta. Um aviso a todos que ocupam cargos cujas decisões põem em risco a vida das pessoas e o equilíbrio ecológico do planeta.

Outra questão relevante é o futuro do Córrego do Feijão e da Jangada. O lugar que já foi tão golpeado precisa urgentemente de regeneração e preservação socioambiental e cultural. O Governo Federal deve retomar a área por meio de uma declaração de caducidade do direito minerário da Vale e empresas associadas. O território deve ser devolvido para a população, para a realização de projetos e iniciativas que promovam o bem-estar social e econômico para todos. Do governo de Minas Gerais esperamos que cancele definitivamente todas as licenças ambientais concedidas para a exploração mineral nessa região.

Devastação após o rompimento da barragem da Vale, em 2019. Foto: acervo pessoal Carolina de Moura

Depois de mais uma década de trabalho de resistência comunitária à mineração antes do rompimento da barragem, e seis anos de luta pós-crime, aprendemos em Brumadinho que não é possível confiar na boa fé da Vale. E que os governos e o sistema judiciário estão aparelhados para servir e atender os interesses de quem tem maior poder econômico.

O que fazer quando as empresas e os governos não atuam para impedir a perpetuação dos crimes da mineração? Mobilizações, arte, memória, debates, denúncias, protestos públicos, ações de solidariedade, formações técnicas e políticas, investigações e muito mais. Movimente-se em coletividade, de mãos dadas com o amor pela vida e com o compromisso com a verdade.

 


 

Carolina de Moura é integrante do Conselho Consultivo Editorial do Projeto Preserva, jornalista especializada em gestão do ambiente e sustentabilidade, moradora de Brumadinho e coordenadora do projeto Lótus, do Instituto Cordilheira, que promove a economia criativa de mulheres defensoras de territórios em conflito com a mineração.

Representa a entidade na coordenação política da Rede Latinoamericana de Mulheres Defensoras de Direitos Sociais e Ambientais. Atua em parceria com organizações internacionais que buscam a responsabilização e a devida diligência das empresas e investidores estrangeiros envolvidos na cadeia da mineração, tendo participado de audiências na ONU e atividades no Parlamento Europeu. Protagonista do documentário “A Ilusão da Abundância”.

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