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O diário de um brigadista

Voluntário descreve o trabalho de um dia de combate ao fogo

Por Humberto Macedo

Brigadista combate fogo no Parque Jacques Cousteau, bairro Betânia, em Belo Horizonte (MG) - Foto: Acervo pessoal Humberto Macedo

“Nonada”. Quinta-feira, 22 de agosto de 2024. São 6h30 e o alarme dispara para mais um dia de trabalho. Minha aula começa às 9h40 e gosto de acordar bem antes para preparar o material, pois sou professor de Direito e advogado. Aproveito ainda para organizar o trabalho remoto que tenho, ratificando as tarefas feitas até mesmo de madrugada. Molho o rosto e sigo para preparar as coisas do dia, abrindo o computador e a cortina do quarto.

Olhando para fora, vimos a cidade toda esfumaçada e seca, prenúncio que “tem fogo por aí”; preparamos o café e vamos às mensagens do celular… Bumba! Várias mensagens de acionamento nos grupos da Brigada Voluntária Brigada 1 – B1. Nesses grupos, insistimos para que as pessoas avisem os bombeiros via 193, seguindo a norma padrão, e passamos a verificar a disponibilidade de ajuda e os locais em que precisam de mais apoio.

Na semana iniciada em 19/08, por exemplo, recebemos pedido de Serra da Moeda, de Ouro Preto, de parques municipais, e ainda tinha uma turma combatendo no Cipó, dentre outros, com vários focos em diversos lugares ao mesmo tempo.

Assim, acelerei o trampo remoto, organizei os prazos, alimentei e “carinhei” o Strogonof (pug da casa), carreguei as baterias das lanternas, enchi as garrafas de água, botei todo o EPI numa sacola (gandola amarela -uma capa de manga comprida e com bolsos, para carregar equipamentos e acessórios-, balaclava*, luvas etc), e fui dar aula com um “olho no peixe” (matéria de Direito) e “outro no gato” (acionamentos nos grupos da B1).

Jornada dupla

Acabando a aula, voltei a carga para a vida de um brigadista voluntário, verificando as prioridades, transporte e avisando em casa e trabalho que “vamos demorar”. Como tenho carro particular, a coisa melhora um pouco, o que não podemos dizer sobre a maioria dos colegas, ficando já patente a necessidade de apoio logístico e viatura aos brigadistas voluntários. É uma atividade carente que precisa de reconhecimento e apoio financeiro e material… Literalmente, pagamos para trabalhar. Pois bem…

Entrei para o banheiro para ler as mensagens “em paz” quando, no grupo de outro coletivo – o de plantio Bora Plantar – pediram apoio sobre incêndio junto ao Parque Linear (região do Belvedere/BH).

Ao mesmo tempo, li que o IEF alinhava com a B1 o apoio logístico para levar os brigadistas disponíveis do Parque do Rola Moça (onde a B1 tem sede e almoxarifado), à região da Serra da Moeda, onde bombeiros e brigadistas já estavam em combate. Pude ver o que os colegas que foram nos dias anteriores em Moeda e Cipó relataram sobre intensidade do fogo, (a)declive e relevo, vegetação e todas as informações disponíveis a um brigadista florestal.

“O trabalho é difícil, duro e extenuante, mas o voluntariado congrega uma série de pessoas diferentes (de profissões, idades e classes) que nessa mesclagem juntam toda a energia e saberes subjetivos de cada, com um único fito de proteger a natureza.”

Nessa toada, o fogo no Parque Linear vinha aumentando conforme relatos nas redes… Pensei: “bom, como o Belvedere é próximo à saída para a BR-040, vou me deslocar para lá e verificar o que podemos fazer”. Chamei dois colegas que já iam para Moeda e pedi para se dirigirem ao “Seis Pistas”, antes de seguir para o outro combate. Insisti nos grupos para o chamado 193 e corri para o local. De lá, com a coisa resolvida, eles poderiam continuar o trajeto para Moeda e adjacências.

A caminho

Subi ao BH Shopping ao som de Ramones – é bom ouviu um punk rock em direção ao combate – e já avistei a fumaça. Parei o carro próximo ao Biocor, encontrei uma dupla de colegas da B1 e nos dirigimos ao fogo; eu levando a bomba costal** de 20kg e os colegas com os chicotes.

Andamos pela linha de trem e rapidamente apagamos o primeiro foco. Quando já estávamos lançando o primeiro sorriso de satisfação, ouvimos um estalo, olhamos para baixo, e vimos uma enorme labareda cortando uma extensa área de capim muito alto, logo abaixo de nós. Meu Deus! Que sensação de impotência. “Não daria combate ali”. O que faríamos? Lembrando de nosso curso e expertise, fomos andando pela linha de trem, procurando um local seguro de “ancoragem” – muro, aceiro, lago etc – em que pudéssemos verificar uma estratégia de combate indireto, visto que o ataque direto ao fogo se dava impossível apenas por nós três em área de muito combustível (capim) e com o sol esquentando, quase ao meio-dia.

“Era esse trio contra um dragão de fogo que vinha indócil pelo combustível seco.”

Nessa visualização, achamos uma pequena trilha e percebemos que ali poderíamos fazer algo. O fogo vinha alto e forte e iria pular facilmente aquele pequeno aceiro (trilha) ali existente. Éramos apenas três, como dito, e iniciamos a estratégia para um “combate indireto”. Fizemos um rebaixamento na vegetação com as botas, tiramos galhos e pedaços de plásticos que pudessem queimar, aumentamos o aceiro, enchemos novamente a bomba costal, ficamos prontos com os chicotes caso alguma fuligem pudesse “pular” e vimos que a única saída ali para que o incêndio não tomasse maiores proporções eram realmente essas técnicas indiretas de combate.

Foi um sucesso tremendo, com muita segurança da ancoragem e bombas e chicotes de sobreaviso, além de muita adrenalina e sede de água para beber. Perdi os meus óculos escuros e boné, saímos esgotados, mas com a sensação do dever cumprido por evitar um incêndio de maiores danos. Conseguimos.

No rescaldo (atividade de encerramento de focos e vistoria no local), encontramos uma viatura dos bombeiros na rua, alinhamos o papo, pedi uma “linha fria” para completar o rescaldo, expliquei a situação e estratégia e, exaustos, mas felizes, fomos almoçar. Os colegas bombeiros relataram ainda que tinham outro foco para atuar também ali perto. É muita coisa!

 

O trabalho é feito em parceria com os bombeiros – Foto: Acervo pessoal Humberto Macedo

Pausa abreviada

No almoço, recebemos a companhia de nossa presidenta da instituição e contamos sobre o sucesso da ação. No entanto, inocentes sobre o momento e deliciando a sobremesa, chega nova mensagem: “incêndio no Parque Jacques Cousteau”. Tudo numa mera quinta-feira… E lá, nesse parque, também temos outro interesse de atuação, pois foram plantadas várias mudas pelo coletivo de plantio Bora Plantar com o apoio da Fundação de Parques.

Mal engolimos o último gole de café e “bora” para o bairro Betânia! Em meu carro particular, agora, com mais uma combatente que formaria o quarteto. Ratificamos a chamada via 193 e pedimos apoio no grupo da B1.

Chegando lá, juntamente com a viatura dos bombeiros, avistamos três brigadistas do parque em combate e rapidamente nos juntamos a eles. Foi um “ataque” bem rápido – estilo “blitizkrieg bop”, lembrando os Ramones acima citados – com os bombeiros, que portavam chicote e soprador, e nós quatro, também com um soprador, chicotes e bombas. Sob intenso calor, conseguimos segurar a linha e salvar a maioria das mudas plantadas. Ufa! Nesse momento, juntou-se a nós outra brigadista, que também é ativa no local, fazendo manutenção ao plantio.

É “pau pra toda obra” com essa turma do meio ambiente! Que trabalho! Que velocidade! Que emoção!!! Juntos, nós, da B1, a turma do Parque e os bombeiros, iniciamos o serviço de mais um rescaldo por todo o perímetro e também dentro da matinha, pois havia alguns focos por lá. Esse, o “segundo tempo” no dia, e saímos, de novo, exaustos, mas orgulhosos de outro belo serviço. Por mais uma vez, já no fim da tarde, sentamos para descansar e comer um espetinho… Um de nós já saiu de lá ao encontro de outra turma de voluntários que seguia para o Gandarela, durante a noite. O tempo não para…

Terceiro tempo

Quando o papo já saía descontraído sobre o que fazer numa quinta à noite, chega o terceiro acionamento do dia: “reignição” no Jacques Cousteau. Pediu-se novo chamado aos bombeiros e iniciamos mais um deslocamento para lá, agora desfalcados de um dos colegas, que partira para a outra ocorrência. Fomos quatro: eu e mais três mulheres guerreiras brigadistas. Chegando novamente ao Parque, rapidamente nos encontramos com a gerência e iniciamos mais um combate e rescaldo, agora dentro da mata escura.

Subimos com enxada e bomba costal e, apagando as lanternas, íamos avistando as brasas, apagando, cavando tocos, fazendo aceiros e realizando um rescaldo de qualidade, característica da B1. Os bombeiros também chegaram e auxiliaram bastante nesse trabalho, além da Guarda Civil Municipal, que colaborou com o transporte de equipamentos e reposição de água na bomba costal.

Exausto, fui ao carro cuidar das mensagens e logística, enquanto as três brigadistas lá permaneceram até a madrugada, observando, apagando e “cercando” todos os possíveis focos de reignição. Voltaram cheias de fuligem, cansadas, com as gandolas amarelas também pretas, mas muito realizadas pelo que fizeram.

Organizamos as coisas e fomos embora – sem o quarto chamado em apenas um dia – com o misto entre a certeza da crise climática, que se agrava, e a tristeza de que ainda existem incendiários criminosos por aí, com a deficiência de um maior apoio às brigadas voluntárias (clama-se por viatura e “a gente paga para atuar”), mas com a alegria da amizade reforçada, com o eficaz e cuidadoso combate pelo brigadista florestal, com o apoio institucional da Fundação de Parques e do Corpo de Bombeiros, e com o peito cheio de orgulho pela defesa de Pachamama ou Urihi (na linguagem indígena).

“Viva a Brigada 1! Viva o voluntariado! Vamos, porque sexta-feira tem mais… ‘Travessia…’.” 

 

Brigadista combate fogo com apoio de helicóptero no limite entre Belo Horizonte e Nova Lima – Foto Acervo pessoal Humberto Macedo

 


* balaclava: gorro confeccionado normalmente com malha de lã que se veste de forma ajustada na cabeça até o pescoço. Sua função tradicional é a proteção térmica.

** bomba costal: bomba de latão de alto rendimento, com manopla dupla e bico aerados para apagar as chamas. Dispensa recargas frequentes como os extintores convencionais.

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