O rastro da monocultura de eucalipto no Cerrado de Minas

Pesquisa aponta que exploração no Alto Jequitinhonha agravou a falta de água, secou nascentes e provocou conflitos de terra
Parte do maciço da Chapada das Veredas, no Alto Jequitinhonha - Foto: Odilon Amaral

Um maciço de eucaliptos que ocupa um planalto de quase 24 mil hectares na zona rural de Turmalina, Vale do Jequitinhonha (MG), deixou como rastros para as comunidades locais o secamento de nascentes, a falta cotidiana de água e a perda de território, segundo pesquisa.

 

A área estudada é a Chapada das Veredas, que tem esse nome porque era um manancial, um local de corpos de água, riachos e pelo menos oito veredas: do Buriti, Mumbuca, Palmeira, Dona, Estiva, Formosa, Tanque e Cemitério. As veredas são formações típicas do Cerrado, onde há terreno úmido e vegetação rica, com arbustos e palmeiras. Toda essa vegetação na chapada foi transformada em monocultura de eucalipto. O aposentado Juarez Souza Rocha, dono de um sítio vizinho à plantação, lembra-se da chapada ainda com mata nativa.

 
“Eu vi tudo isso antes de a empresa chegar. Todo mundo podia buscar água nas veredas, levar animais, buscar frutas. Mesmo depois que o plantio começou, as veredas ainda podiam ser usadas pelos moradores. Com o tempo, eles foram cercando a área e ninguém mais podia entrar”, conta Juarez.
 

A restrição de acesso ao espaço da chapada foi uma das consequências da monocultura. A pesquisa também avaliou os impactos na água e no solo. O estudo durou dois anos e foi feito em conjunto entre Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Instituto Federal do Norte de Minas (IFNMG), a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), o Instituto Federal do Leste de Minas Gerais (IFLMG), o Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IFSMG), o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (Cav) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

 

Os pesquisadores analisaram imagens de satélite, monitoramentos de rios, fizeram pesquisas sobre uso e ocupação do solo e ouviram moradores em seis comunidades. Um agricultor da comunidade Campo Buriti, de 80 anos, ouvido na pesquisa, disse que só a vereda do Buriti tinha cerca de 10 km e que, até 2018, ainda via por lá palmeiras, buritis e macaúba. “As veredas formavam grandes espelhos de água misturados no capim nativo. Os moradores costumavam pescar nelas.”

 

Essas comunidades ficam no entorno da Chapada das Veredas, em vales conhecidos ali como grotas, como mostra o mapa abaixo.

 
Neste mapa, está a localização das veredas na chapada, atualmente secas. Embaixo, em vermelho, a localização das comunidades, nos vales. Fonte: Google Earth. Elaborado por Emília Pereira Fernandes da Silva, 2019. / Silva, (2019) – Clique na foto para ampliar.

A exploração da Chapada das Veredas é feita pela Aperam Bioenergia. A empresa chegou ao Vale do Jequitinhonha com o nome de Acesita na década de 1970, quando um conjunto de empresas recebeu incentivos fiscais públicos, propostos pelo governo militar, para implementar extensas monoculturas de eucalipto na região. A promessa era de fomentar o progresso, gerar empregos, mas a monocultura produziu outros efeitos para as comunidades locais:

 
“Há mais de 40 anos, esses eucaliptos estão matando a gente com falta de água e agrotóxico na terra. A gente colhia frutas na Chapada e voltava com cesto cheio. O Rio Fanado, que passa aqui, tinha muita água, mas as nascentes secaram. Hoje ele tem um filete de água. Muita gente que vivia de agricultura teve que ir embora, porque, sem água, não tem como plantar”, conta uma moradora que não quis se identificar.
 
O deserto verde no Vale do Jequitinhonha
 

“Na maior parte das narrativas a imagem do Vale do Jequitinhonha é associada à seca. A falta de água é considerada ‘natural’; mais um, entre os muitos problemas ‘naturais’ que são creditados à região. Mas, na verdade, ao longo dos três séculos de ocupação da terra no Jequitinhonha, somente na década final do século XX seca e escassez passaram a fazer parte do cotidiano dessa população rural. Secas periódicas ocorriam – e ocorrem – como é frequente em todo o Semiárido; mas eram localizadas, sazonais e não necessariamente provocavam falta de água. A escassez surgiu associada a um conjunto de intervenções públicas e privadas na paisagem, nos regimes agrários e nos mananciais.” Trecho da pesquisa “Metamorfose na Chapada: monocultura de eucalipto e tomada de terras e águas no Alto Jequitinhonha, Minas Gerais”.

 

A pesquisa mostra que, ao longo dos anos, a ocupação na Chapada das Veredas se intensificou até quase não restar vegetação nativa. Uma das autoras, a antropóloga Flávia Galizoni, do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG, afirma que houve um processo de privatização das terras da chapada e, com isso, a privatização da água.

 
“As comunidades foram muito impactadas pela monocultura de eucalipto, porque monocultura é o oposto de biodiversidade. Com o desaparecimento das nascentes e veredas, os moradores são obrigados a escolher entre a água para produzir alimentos e a água para consumo.”, explica a pesquisadora.
 

Em situação de escassez, 76% das famílias que faziam lavoura relataram que a roça é duramente afetada, pois deixam de plantar ou reduzem a área plantada, de acordo com a pesquisa.

 

A capacidade de recarga de água também diminuiu. Enquanto o bioma nativo é capaz de absorver 50% de toda a água de chuva para recarregar os lençóis freáticos, as áreas submetidas à monocultura de eucalipto absorvem apenas 29% do que chove.

 
Estrada que corta o maciço de eucaliptos jovens dentro da Chapada das Veredas, em Turmalina (MG) – Foto: Juliana Perdigão
 

O plantio de eucalipto durante essas décadas também teve como consequências diretas o rebaixamento dos lençóis freáticos e a diminuição da vazão dos rios, segundo a pesquisa. O engenheiro agrícola Vico Mendes Lima, doutor em solos do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, explicou que as árvores nativas do cerrado têm mecanismos de adaptação para os períodos secos. Algumas perdem as folhas como se estivessem em “hibernação” para economizar água, mas os maciços de eucalipto não funcionam assim: “quando falamos do monocultivo de eucaliptos, estamos falando de plantas clonadas e plantadas muito próximas umas das outras, para o máximo de eficiência do seu uso.”

 
“No monocultivo, os eucaliptos são desenvolvidos para crescer rapidamente e, por isso, essas plantas fazem verdadeiros bombeamentos de água do solo, mesmo durante a seca. Isso significa que as raízes na Chapada das Veredas buscaram água em profundidades cada vez maiores até afetarem o lençol freático”, diz o pesquisador.
 

Os efeitos são visíveis. Esta série histórica mostra imagens da Lagoa do Tanque, analisada na dissertação da engenheira florestal Emília Silva. O espelho de água tinha o tamanho de 23 hectares. A redução de água se intensificou na década de 1980, quando o espelho passou para 9 hectares. A partir de 1995 a lagoa secou totalmente.

 
Fonte: Vico Mendes Pereira Lima; Galizoni et al. 2021. Clique na foto para ampliar.

Em metade das famílias entrevistadas durante a pesquisa (52%), o consumo médio de água é de apenas 43 litros por dia, enquanto a Organização Mundial da Saúde estabelece, como quantidade mínima, o consumo diário de 110 litros por pessoa.

 
Conflitos de terra
 

O estudo foi feito a pedido do Cav – Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica -, uma ONG com sede em Turmalina, que representa as comunidades agricultoras. De acordo com Renato Alves, engenheiro agrônomo do Cav, os conflitos por causa do uso e ocupação do solo são constantes. A Chapada das Veredas, antes considerada área comum, foi cercada em 2019. Os resíduos de eucaliptos que ficam na Chapada podem ser usados pelos moradores para produzir carvão, mas essa atividade também tem sido motivo de problemas. No dia em que a equipe do Projeto Preserva esteve na região, houve um embate: segundo os moradores, os fornos de carvão de alguns deles foram destruídos depois que a empresa alegou que a madeira usada não era de resíduo.

 

Sinais do conflito no horizonte da Chapada. Clique para ver o vídeo – Imagens: Odilon Amaral

 

Relatos de plantio de eucaliptos em propriedades particulares que fazem divisa com a Chapada das Veredas também se repetem. Juarez Rocha, entrevistado no início desta reportagem, entrou na justiça e conseguiu ter de volta parte do sítio invadido pela empresa.

 
Juarez Rocha mostra a decisão da Justiça – Foto: Juliana Perdigão
 
Monocultiura para produção de carvão vegetal?
 

A produção de eucaliptos da Chapada das Veredas, em Turmalina, assim como nas chapadas de outras cidades do entorno, é transformada em carvão vegetal pela Aperam Bioenergia, para abastecer os fornos da Aperam South America, a 350 quilômetros dali, em Timóteo, região do Vale do Aço, em Minas Gerais. De acordo com a página da empresa, são ao todo 76 mil hectares de eucalipto melhorado geneticamente. A produtividade ultrapassa, em média, a casa dos 40 metros cúbicos de madeira por hectare.

 

A área ocupada, que abrange os municípios de Turmalina, Capelinha, Veredinha, Itamarandiba e Minas Novas, é considerada a maior plantação de eucalipto do mundo, segundo a Coordenadoria Regional de Meio Ambiente do Jequitinhonha e Mucuri.

 

Procurada pelo Projeto Preserva, a Aperam afirmou em comunicado: “A sustentabilidade faz parte do DNA da Aperam, por isso, todas as ações da empresa são planejadas e desenvolvidas seguindo uma relação de harmonia e respeito com o meio ambiente. No Brasil, a Aperam South America tem sede em Timóteo (MG), onde produz o aço neutro em carbono nos escopos 1 e 2, e conta com a Aperam BioEnergia, no Vale do Jequitinhonha, que tem capacidade única de produzir carvão vegetal, um combustível renovável, feito de sua própria floresta certificada pelo FSC®, no Vale do Jequitinhonha. A certificação internacional FSC® – Forest Stewardship Council® preconiza o manejo florestal economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto”. Veja a íntegra do posicionamento neste link.

 

Mas, de acordo com a pesquisa, o rastro deixado pela monocultura para produção de carvão vegetal tem custo alto para as comunidades que vivem a urgência cotidiana da busca pela água. Os pesquisadores concluíram ainda que a tomada de chapadas por empresas monocultoras de eucalipto, com anuência do Estado, simplificou o caráter do lugar e limitou alternativas mais justas para gerir a natureza.

 
A ocupação do solo em Minas Gerais
 

Em Minas Gerais, a monocultura para produção de madeira com fins comerciais, que inclui as florestas de eucalipto, mais que dobrou em 20 anos. Os dados do MapBiomas mostram que, no estado, em 2002, 898.790 hectares foram desmatados. Em 2022, a área desmatada para a silvicultura chegou a quase 2 milhões de hectares, atingindo 1.867.682 hectares.

 
Plantação de eucaliptos da Aperam, na Zona Rural de Turmalina. É praticamente só o que se vê no horizonte – Foto: Odilon Amaral
 
“O eucalipto plantado em larga escala, em terreno semiárido e sem considerar os aspectos naturais e a cultura das comunidades é um desastre: causa cada vez mais impacto no solo”, reforça Walmir Macedo, coordenador do Cav.
 

Ouvimos os pesquisadores citados na reportagem para saber quais seriam as possíveis alternativas. A antropóloga Flávia Galizoni pontuou que as comunidades sempre usaram o solo de maneira sustentável.

 
“Os moradores usam rios e veredas para agricultura e consumo próprio sem afetar o abastecimento de água. Isso pode apontar caminhos para modelos mais amigáveis de produzir sem degradar. Essas comunidades dão pistas para todos nós: academia, empresas, sociedade, de como produzir sem degradar, porque eles sempre fizeram isso.”
 

Segundo o Ipam, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Cerrado é a nascente de 8 das 12 bacias hidrográficas do país e mais da metade, 62%, da vegetação nativa remanescente está em áreas privadas. Os dados são de setembro de 2023.

 

O engenheiro agrícola Vico Mendes Lima ressalta a necessidade de se pensar em formas de diminuir os efeitos sobre as nascentes, com melhor planejamento do uso do solo.

 
“É preciso haver um plano de manejo para plantio de eucalipto com sistemas que não usem o monocultivo, sistemas mais biodiversos, que conservem a água. Precisamos lembrar que o cerrado é a caixa d’água do Brasil.”
 

As nossas reportagens podem ser republicadas, desde que sem qualquer tipo de alteração e que seja citada a fonte. Deve constar o(s) nome(s) do(s) autor(es) da foto e/ou da reportagem, assim como o nome do Projeto Preserva e, quando possível, o link para a página em que o material foi publicado originalmente.


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