O rio Doce em coma e o acordo de Mariana

O rio Doce foi imensamente afetado pelo rompimento da barragem de Fundão, pertencente à Samarco, há nove anos, em Mariana (MG) | Coluna Jornal Diário do Comércio
Rio Doce, na altura do território Krenak, em Resplendor (MG) - Foto: Projeto Preserva

 

“A água do rio tem medo de gente. E o medo que sente não é desvario, que é gente que mata a água do rio”. O trecho da música “A água do rio Doce”, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro, foi lembrado o tempo todo por Ailton Krenak, na conversa com o Projeto Preserva, há pouco mais de um mês, numa ilha no rio Doce: “a água do rio tem medo e a gente, também”.

O Watu, como o rio Doce é chamado pelos Krenak, foi imensamente afetado pelo rompimento da barragem de Fundão, pertencente à Samarco, há nove anos, em Mariana (MG). “O Watu, o nosso avô, está em coma”, diz Krenak.

Em 5 de novembro de 2015, 60 bilhões de litros de lama tóxica foram despejados no leito do rio, levando destruição por 675 km, até chegarem ao mar, poluindo o litoral do Espírito Santo e da Bahia. Comunidades, distritos inteiros foram varridos do mapa pela lama da mineração.

Naquele dia, o maior desastre ambiental do Brasil matou 19 pessoas. Mas quantas tiveram a vida devastada ao perderem sua casa, sua dignidade, suas memórias, soterradas pelo rejeito da mineradora controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP? Quantos povos, comunidades e cidades perderam seu meio de subsistência com o sumiço dos peixes e a poluição da água? Quantas culturas foram interrompidas, pois não se pode mais ligar a vida à água do rio?

“Principalmente, pr’aqueles que têm menos de 20 anos, significa que, a metade da vida deles, eles passaram dentro de um trauma criado por uma corporação mineradora que se nega a admitir que fez um erro”, diz Ailton Krenak.

Falta d’água

Nos alpendres, por todas as casas do território Krenak, é comum a visão de fardos e mais fardos de água mineral, recebidos para suprir a ausência do recurso natural: a água do rio. As crianças não são mais batizadas no rio Doce. Elas aprendem a nadar em caixas d’água.

“Nós somos abastecidos por caminhão-pipa que entra lá, na reserva. Se parar o caminhão-pipa, todo mundo tem que ir embora de lá, porque lá dentro não tem água”, diz Krenak.

Justiça por Mariana e pelo rio Doce

No mês passado (dia 21), começou o julgamento da BHP em Londres, na Inglaterra, onde ficava, na época, uma das sedes globais da empresa. A expectativa é de que saia uma sentença em março do ano que vem.

Quatro dias depois, Vale, BHP, Samarco, União e governos estaduais assinaram um acordo de R$ 170 bilhões, homologado por Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Regional Federal da 6ª Região e Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Representantes das vítimas ficaram de fora da elaboração do acordo, “numa clara violação ao direito de participação livre e informada do povo atingido”, segundo o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens).

Além de Brasil e Inglaterra, há processos correndo na Justiça da Austrália e na da Holanda.

“É um luto silencioso, terrível, porque ele produz um trauma coletivo. É como se a pessoa perdesse a fé na vida”, completa Krenak.

Abaixo, você vê a entrevista de Ailton Krenak sobre os nove anos em que as crianças da região são ensinadas que a água do rio é perigosa. Mas o rio Doce é apenas uma das vítimas apavoradas pelo desastre. E, se tem medo, é porque sabe “que é gente que mata a água do rio”.

 

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